Tigelas de cerâmica. Heranças dos antepassados. Há também objetos escolhidos para compor a nossa casa, usos cotidianos. São como as nossas histórias e nossas vidas. São como as heranças recebidas dos nossos familiares, são como as relações que nos estruturaram e que nos estruturam. Nós crescemos e nos formamos, nos tornamos quem somos a partir de tudo o que recebemos, valores, costumes, histórias e de tudo o que construímos nas vivências com os outros e o mundo.
As tigelas da nossa existência foram moldadas por mãos de muitos e pelas nossas. Todos nós já recebemos heranças cuidadas, preciosas e imaculadas. Tigelas inteiras, guardadas, protegidas, amadas, cuidadas com zelo. Mas também já recebemos heranças quebradas, algumas remendadas, outras maltratadas, cacos, vasos lascados, furos nos cântaros sem remendos. Aí a água nos vasa. Sentimo-nos largados, fragmentados, soltos e perdidos, escapantes, desunidos. Estrutura danificada, desestruturada.
E crescemos assim tentando juntar os cacos, colar as partes, viver com o que temos. Por vezes, com violência, quebraram os pratos diante dos nossos olhos, nos machucaram, nos assustaram. Quebram aquilo que temos de precioso! E continuamos a quebrar, sem outras referências e por descuido, por ignorância, por não sabermos segurar o pires com firmeza, talvez…
Mas apesar de tudo temos em nós a arte de restaurar feridas… e por vezes precisamos de ajuda, de outras relações, de outras referências e de uma nova cultura, uma sociedade que saiba também a arte de reunir e não apenas de quebrar. Mas em nós vamos restaurando à nossa maneira. Tapamos furos, sobram outros. Vamos dando o nosso jeito. Somos criativos. Com nossos vasos na cabeça carregamos a nossa água com a criatividade que nos cabe.
Contudo, em nossa casa podem haver muitos utensílios lascados, em perigo de novamente uma xícara destas, lascadas, cortar a nossa boca. É ferida aberta prestes a sangrar os lábios de alguém. Aquilo que se quebra, que se lasca na nossa história, na nossa herança, na relação com os costumes e afetos diários do hoje e do passado faz parte de nós como dor, como imperfeição, como machucado, como tragédia. Que tragédia ver minha louça mais rica destroçar-se.
Nós temos saídas! Aquilo que se quebrou e ficou como ferida aberta ou que está prestes a cortar os lábios e causar feridas pode ser reconstituído, recomposto, reconstruído, não de qualquer forma, mas com cuidado, trabalho minucioso, delicadeza e processo. É um processo de beleza e que chamamos de arte.
Como é lindo este processo de restauração de nossa história, de olhar amoroso para nossas imperfeições. Quando somos capazes de restaurar e remendar nossas feridas, com o ouro da vontade de ainda degustar um chá naquela mesma xícara, nós veremos que aquela xícara ganhou novo brilho e tem muito mais valor. Quando a gente reelabora, reconstitui colocando com criatividade a nossa capacidade de reunir o que ficou quebrado, nunca mais aquela xícara será como antes. Sua beleza se elevou a outro patamar, a outro valor, ainda maior. E é obra-prima e única. Não há outra igual!
É amor-próprio reconstruir-se. É dar novo sentido. É não desistir. Os japoneses criaram o kintsugi, a arte de reconstituir com ouro objetos quebrados, que deixam transparecer as marcas das fragilidades vividas. Como somos frágeis! Mas da reconstrução mostramos autenticidade, ninguém se quebra da mesma forma, com os mesmos cacos. Ninguém se reconstrói da mesma forma, com o mesmo desenho.
Esse processo de reconstrução nos torna únicos e muito mais belos do que antes. Nossas marcas de dor são expostas. Elas revelam fragilidade, trabalho, tempo de cuidado, beleza, autenticidade, paciência. É um processo que aos poucos fazemos com elegância. É quando aprendemos que de nossas dores podemos reluzir!
Ana Terra Araújo